domingo, 12 de junho de 2011

SANÇÃO DISCIPLINAR CASTRENSE: “benefício educativo” ou dívida impagável (?)

Joilson Gouveia*
A guisa de informação aos laicos no mister disciplinar castrense, é de supina valia destacar que a sanção disciplinar castrense, enquanto ato administrativo que é, para ser aplicada ao transgressor, há de estar definida em lei – não é competente quem quer e sim aquele a quem a lei define – in casu, a despeito desta exigência legal “a competência para aplicar as prescrições contidas neste Regulamento é conferida ao cargo e não ao grau hierárquico”(sic.), consoante se vê do Art. 11 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Alagoas(RDPMAL), caput, primeira parte, aprovado pelo Decreto Estadual nº 37.042[1], de 06 de novembro de 1996 – Note-se: decreto (mero ato administrativo normativo) e não LEI, formal e legítima. “É reservada à lei a disciplina das liberdades. E, sobretudo, deve ser reservado à lei a definição das sanções que hão de punir os abusos no exercício dos diretos”.[2]
Ademais, observado ou conhecido o fato que se reputa transgressão disciplinar, é imperiosa sua narração por escrito (mediante parte ou comunicação), de forma clara, precisa e concisa, apresentada em duas vias e no prazo de dois úteis e dirigida à autoridade competente (fora disso e deste prazo inquina-se de vícios que os tornam ilegais), é a ilação a que se chega dos Art 15 e 16 do mesmo diploma legal - Autoridade competente outra não é senão aquela conferida ao cargo. Ou seja, àquela a quem o suposto transgressor estiver funcional, administrativa e operacionalmente subordinado.
O Art. 39 do RDPMAL – estabelece que “A punição disciplinar visa o benefício educativo do punido e o fortalecimento da disciplina da Corporação”. Entrementes, supondo-se válido, legítimo e constitucional o preceito suso transcrito, admitindo-se que o benefício educativo do punido, e, mais ainda, o fortalecimento da disciplina[3] da Corporação (A entidade enquanto pessoa jurídica não tem disciplina e sim seus agentes, o inter-relacionamento desses mesmos agentes) pudessem ser alcançados, ou seja, quisera seus desideratos visados tivessem efeitos e eficácia, na prática.
Via de regra, a punição imposta despenha da legalidade, mormente no tocante ao due process of law, porquanto inexistente na Corporação consoante estatuído da Carta Política da Nação, i.e., nos moldes em que é assegurada a garantia da ampla defesa e do contraditório, com todos os meios e recursos a ela inerentes, haja vista praticar-se um arremedo do devido processo legal ou um rascunho de “apuração regular da falta disciplinar” ou um mero esboço de ampla defesa.
A ampla defesa é inconcebível, inexistente ou cerceada se e quando “patrocinada” pelo próprio acusado de ter cometido a transgressão (de logo chamado de transgressor, mesmo antes de provada sua culpa, o punido. Portanto, sem nenhuma valia o Princípio da Inocência ou da Presunção jure et juris et juris tantum da Carta Política) quando deveria ter o patrocínio do “advogado que é indispensável à administração da justiça[4]. Já o art. 2º, caput, do Código de Ética do Advogado, por sua vez, diz que, “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce[5].Noutras palavras, há pseudo-defesa ou manifesta ausência desta quando feita de per si, pelo próprio transgressor e sem a defesa técnica feita por um causídico. Infelizmente, tem sido assim na caserna. É práxis. Portanto, é imperiosa a defesa hábil, técnica e competente de quem tem, pode e deve exercer o jus postulandi, daquele que detém a capacidade postulatória: o advogado. Sem ele é nulo todo e qualquer processo.
Doutra banda, em se admitindo a humilde resignação (para não dizer humilhação) e o alto grau de disciplina do PM (punido) ao cumprir a sanção imposta, dia-a-dia, diuturna, noturna e diariamente enclausurado nas masmorras castrenses, tenha ela ou não grades e barras de ferro próprias das jaulas das feras e de celas para os homicidas perigosos e outros delinquentes de alta periculosidade[6].
Ele cumpre a “sentença” que se lhe fora imposta, e aí, está solto? Está livre? Responde-se. Solto até que pode ficar posto que poderá tornar transitar livremente outra vez, mas livre da sanção (sentença condenatória) não está, não! Não está e nem estará livre da sanção que lhe fora imposta, não antes de exaurido o prazo previsto no Art. 95, § 1º, inciso I do RDPMAL, in verbis:
“Art 95 – Cancelamento de punição é o direito conferido ao policial militar de ter cancelada a averbação de punição e outras notas a ele relacionadas, em sua alterações.
§ 1º - O cancelamento a que se refere esta artigo:
I – será conferido, mediante requerimento, ao policial militar que tenha completado cinco anos de efetivo serviço sem que haja sofrido qualquer punição disciplinar, inclusive de advertência.
II – anula todos os efeitos dela decorrentes, passando, inclusive, a contagem de tempo para classificação de comportamento à data da última punição sofrida, anterior à cancelada”.(sic.) – destaquei.
Assim, até exaurido este amargo prazo, o PM que haja sido punido está fadado a sofrer perversas discriminações e odiosas, cruéis e injustas perseguições, porquanto ainda que tenha cumprido, rigorosamente e “à risca”, aquela sua “sentença condenatória” ainda irá amargar os seus nefastos efeitos por mais dois ou três anos após findar o quinquênio de remissão, digamos assim.
Explico. Primeiro – trata-se de um “direito” que só lhe será assegurado se postular, requerer, pleitear, pedir. Ora, se direito seu; dever da Administração. Este cancelamento deveria ser automático assim como, também, o quinquênio por tempo de efetivo serviço. Mas esta sempre olvida(?)
Segundo – como ainda não cancelada e mesmo que já cumprida, ainda assim ele (o PM punido) está alijado de, por exemplo, ascender na carreira ou de se submeter aos concursos por ventura existentes na Corporação, posto que praxe ter-se como requisito de admissão ou inscrição em concurso qualquer “não ter sido punido por transgressão da natureza grave nos últimos dois ou três anos” – de acordo com as conveniências.
É de se indagar: onde o caráter educativo do punido?
É de se ver, portanto, que ele cumpriu e pagou a punição, mas não está quite ainda com a justa disciplina da Corporação. De lembrar que toda punição é considerada grave, exceptio advertência e repreensão, mas se, durante o prazo quinquenal, sofrer apenas uma mera advertência terá seu direito suspenso. Logo, nessas condições tanto uma quanto a outra supera àquela ditas médias e graves. Ademais, mais grave ainda é a clausura por mínima que seja. É odiosa e irrelevante perante o bem jurídico que visa tutelar: uma disciplina aética, inconstitucional, retrógrada, arcaica, própria dos feudos e impostas pelos déspotas dos séculos medievais enquanto ao gravame do menor poder lesivo ou ofensivo. Aliás, nesse sentido, já esposada em nossa tese monográfica, a saber:
“Doutra banda, por se entender, o rígido rigor das sanções disciplinares exorbita e extrapola até mesmo o jus puniendi do Estado, enquanto sociedade lesionada, porquanto o controle jurisdicional é assegurado ao indivíduo que extirpa o bem maior do cidadão, da pessoa  humana que é a vida, mediante o “Habeas Corpus” e o “relaxamento” da prisão - noutras vezes -, no caso de não ter havido flagrante delito ou determinação escrita de autoridade judiciária competente; enquanto ao PM, exemplitia gratia, se faltar à verdade (transgressão grave) poderá ter cerceado o seu direito de liberdade de locomoção, id est., o direito de ir, permanecer e vir, ao ser recolhido à prisão das casernas. Exsurge, assim, um questionamento: onde o princípio da igualdade perante à Lei e o da equidade de tratamento dos direitos e garantias individuais e de acesso ao Poder Judiciário? Seria a transgressão mais gravosa que o crime? Daí, e por isso, não ser admitida a apreciação do Poder Judiciário!(?)”[7].
A palavra e a vontade do “príncipe[8] castrense tem mais valia que os princípios fundamentais de todo homem e do cidadão insculpidos na Carta Magna. É incompreensível que o sistema castrense seja alienado da Lei Fundamental e não subsumido ao Estado Democrático de Direito instituído pela constituição Federal de 1988. No berço da hierarquia e da disciplina não se respeita ao Princípio da Hierarquia das Leis e à Lex Suprema.
Vale dizer, no mais da vez, os direitos e garantias fundamentais especificados no Título II e os direitos e deveres individuais e coletivos, no Capítulo I, especificados no Art 5º da C.F. de 1988 não têm nenhum valor ante ao império castrense “juridicizado” num mero decreto regulamentar – ato normativo, mero ato administrativo que nem lei é, formal e legitimamente falando – não sendo despiciendo trazer a lume, também, que uma simples Portaria do Comando Geral “regulamenta” os procedimentos administrativos do PADO - Processo Administrativo Disciplinar Ordinário - que se diz processo regular de apuração da falta disciplinar ou o devido processo legal que está “previsto” num decreto, o RDPMAL.
De mais a mais, já se disse que o RDPMAL, enquanto decreto, é ilegítimo, ilegal e inconstitucional, quanto mais esta dita Portaria de regulamentação do PADO, inclusive não é preciso ser exegeta ou jurisconsulto para perceber que os vocábulos ninguém, alguém, qualquer, pessoa, todos, brasileiro e cidadão todos contidos nos preceitos fundamentais da CF/88, parece não se aplicarem ao PM, o qual, para muitos ou a imensa maioria da caserna ou não, nem mesmo ser humano é quanto mais cidadão ante tanta discriminação ou cerceamento de seus direitos.
Como visto ut supra, não basta que seja apenas narrada por escrito e dentro de dois dias úteis, para ser solucionada em até quatro dias úteis (Art 16, III e !9 do RDPAML) é imperioso se cumprir e se respeitar senão aos princípios constitucionais fundamentais da Lex Magna (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; “ninguém será privado da liberdade (...) sem o devido processo legal”;”ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” – Note-se: exceptio feita dês que definidos em Lei, formal e legítima. Onde a lei que as define?) ao menos cumprir e fazer cumprir ao due process of law.
Lembrando que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”; “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória”;( são os incisos LIII, LIV;LVII, LXI,LXV,LXVI do Art.5º da CF88) - Ou o servidor castrense não é ninguém ou sequer ser humano ou mesmo pessoa ou sujeito de direitos(?) O PM é apenas sujeito de deveres e obrigações jamais de direitos. Seria o status castrense supra-constitucional ou não subsumido ao Estado Democrático de Direito?
Isto posto, à guisa de informações, é mister trazer à baila parte do texto de nossa monografia “Do cabimento do habeas corpus e do mandado de segurança nas prisões e detenções disciplinares ilegais na PM”, senão vejamos:
Seguindo-se à mesma lógica ut supra, nossa Carta Maior ainda estabelece: “III - Ninguém será submetido a tortura nem a TRATAMENTO DESUMANO ou DEGRADANTE”- g.n.
Nesse sentido, é de se ressaltar o luminar escólio de José Cretella Júnior[9], que ensina:
“Pode não ocorrer tortura física, e, no entanto, as pessoas  podem ser submetidas a tratamento ‘desumano’ ou ‘degradante’, tratamento que incida sobre a honra, a dignidade, o psíquico. Pode-se separar o marido da mulher, ou vice-versa, ou dos filhos. Pode-se aviltar a pessoa, forçando-a a proceder de modo contrário a princípios morais ou religiosos, que lhe são sagrados.”
E, continua o mestre citado:
“(...) Dentro do Espírito e da letra da Constituição, que se propõe a instituir Estado de Direito, no qual se assegura o exercício dos direitos individuais e sociais, erigindo-se a justiça como valor supremo numa sociedade fraterna e solidária, em que a dignidade da pessoa humana é cultuada, todo tratamento deve ser humano, não permitindo a regra jurídica constitucional nenhum tratamento degradante ou desumano,” ou aviltante - tornar-se-á ao tema mais adiante.
Estabelece ainda mais, de forma clara e hialina: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, excetuando-se aos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, desde que definidos em Lei.(Inciso LXI).
Infere-se, portanto, do normativo suso adscrito, que duas acepções são significantemente trazidas à baila: a) primeiramente, in stricto sensu, de que, somente e unicamente em flagrante delito ou com a determinação escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, justifica-se a prisão de “alguém”. Contrario sensu, ou seja, fora dessas hipóteses, há eiva e vícios de ilegalidade ou de abuso de autoridade e de excesso punitivo, e; b) em segundo lugar, lato sensu, a expressão e vocábulo “ninguém” não excetua nenhum cidadão, brasileiro ou estrangeiro, da garantia assegurada no citado preceito constitucional.
Demais disso, sobre o mister, outra não é a ilação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que assim se expressa:
“(...) dos direitos relativos à segurança pessoal o mais importante é o que enumera o Art. 5º, LXI. Nele firmemente se resguarda a liberdade pessoal ao se proibirem as prisões, a não ser em “flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente...”.  Impede-se, assim, o arbítrio a sacrificar imotivadamente a liberdade individual. Esta matéria se relaciona diretamente com o Habeas Corpus.”[10]
Ainda quanto ao amplo sentido do vocábulo “ninguém”, a CF/88 elenca no mesmo Art. 5º os dispositivos seguintes: “LIII - ninguém será privado da liberdade (...) sem o devido processo legal.”; “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” ; ”LXV - ninguém será levado à prisão ou nela mantido (...)” etc.; cujo entender não excepciona nenhuma pessoa humana. “Ninguém”, pois, está-se a referir a toda e qualquer pessoa humana, todo e qualquer cidadão, e, nesse sentido, o policial  militar ou o militar se inserem, haja vista que não deixam de ser cidadãos.
Logo, numa exegese sistemática e irrestrita, como devem ser interpretadas as normas de direito público, não poderiam nem deveriam haver exceções à regra, sob pena de conflito de normas e antinomia”.
E, passados todos esses anos, queremos encerrar este breve ensaio com as mesmas indagações de outrora:
“Fundados, pois, nesses princípios, é de se perquirir: ao se recolher um PM à prisão (xadrez) da OPM ou mesmo “presídio militar”, por decorrência de mera transgressão disciplinar, e, mais ainda, sem que tenha dado azo para tal, não se está a infringir aos princípios acima? Não se inflige tratamento desumano e degradando sua dignidade? Mais da vez, o PM não é recolhido e preso num xadrez, a despeito de sua irrestrita obediência à disciplina e à hierarquia, contudo, sem lhe ser oportunizada a ampla defesa e o contraditório? Em sendo assim, tais atos não estão eivados de ilegalidade, arbítrio e/ou abuso de Poder? Onde o devido processo legal, que é a todos assegurado (Art. 5º, LV da CF/88)?”
Assim, nada melhor do que o pensamento de Charles Chaplin, para traduzir e refletir a situação dos castrenses:
“Soldados. Não vos entregueis a esses brutais... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos. Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada; que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como carne para o canhão. Não sois máquinas. Homens é que sois.”[11]
Maceió, 21 de abril de 2001.
*Servidor militar estadual no posto de Ten Cel PM e Bel em Direito p/ UFAL.
BIBLIOGRAFIA

[1] Nesse sentido, ou seja, quanto à demonstração cabal da patente ilegalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade de decreto enquanto instrumento jurídico, para “regular” sanções (cruéis sentenças) coercitivas cerceadoras e/ou restritivas do inalienável direito de liberdade do cidadão, vide do mesmo Autor: “A flagrante inconstitucionalidade do RDPMAL”; O RDPMAL face às súmulas 55 e 56 do STF” e “Do cabimento habeas corpus e do mandado de segurança nas prisões e detenções ilegais na PM” todos inseridos no site http://djuris.br.tripod.com .
[2] Manoel Gonçalves Ferreira Filho apud in Do cabimento do habeas corpus e do mandado de segurança nas prisões de detenções disciplinares ilegais na PM, p. 67. PMESP.1996, deste signatário.
[3] Sobre disciplina vide o artigo Hierarquia e Disciplina, editado em O Jornal de Alagoas em 02.11.1991, deste mesmo Autor, que lhe acarretou 20 dias de prisão imposta pelo déspota.
[4] Vide Art 133 da Constituição Federal de 1988.
[5] Rosa, Paulo Tadeu Rodrigues. O advogado e a ética. Ribeirão Preto - SP, editado no site http://djuris.br.tripod.com .2001.
[6] Nesse sentido, cientificamente provado em pesquisas que, o PM preso ou detido no xadrez ou não, se sente igual ou pior que o marginal ou meliante que ele tenta combater.
[7] Vide deste mesmo Autor: “Do cabimento do habeas corpus e do mandado de segurança nas prisões e detenções disciplinares ilegais na PM”.
[8] Alguns chefes, comandantes e diretores se sentem o próprio, mormente se oficial.
[9] id, ibidem, op. cit.,  p.201.
[10] id. ibid., op. cit., p. 261/262.
[11] Charles Chaplin. apud Carlos Alberto Moreira da Silva Cap. PMDF, “Qualidade e Produtividade na Polícia Militar do Distrito Federal”. Monografia - CAO-II/95 - CAES PMESP. São Paulo. 1995, p. 79.

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